Não se pode admitir o sacrifício dos consumidores em razão da inabilidade das seguradoras em diferenciar a fraude do serviço corretamente prestado e probo do reembolso nos termos contratuais dos seguros saúde.
Muito se tem discutido a respeito da possibilidade legal do chamado "reembolso auxiliado" ou "reembolso sem desembolso" e as opiniões são diametralmente opostas. Diversos operadores do direito debatem sobre a questão, mas pouco se fala a respeito das prováveis consequências da proibição ou mesmo da normatização equivocada dessa conduta.
A ANS, agência reguladora da saúde suplementar no Brasil, até o momento prefere manter o silêncio e receber uma verdadeira enxurrada de "reclamações", as chamadas Notificações de Intermediação Preliminar, possivelmente aguardando o desenrolar político da questão.
O presente artigo não tem qualquer pretensão de esgotar o tema ou mesmo propor uma solução simplista à tão complexa questão, mas tão somente elucidar as possíveis implicações a longo prazo de uma possível (mas não provável) exclusão da prática comercial.
Plano de saúde x Seguro Saúde
Os planos de saúde e seguros saúde não obstante visem precipuamente o fornecimento de assistência médico/hospitalar aos seus beneficiários, possuem diversas particularidades, que os tornam essencialmente distintos.
De um lado, os planos de saúde "vendem" a cobertura dentro da sua rede credenciada. Não existe qualquer desembolso pelo beneficiário ao realizar exames, consultas e outros procedimentos médicos. É o que muitos dizem popularmente, "passar a carteirinha".
Já os seguros saúde, apesar de possuírem sua rede credenciada/referenciada, oferecem a possibilidade de o segurado buscar o tratamento no local e com o profissional de sua confiança. É a chamada "livre escolha". O segurado escolhe o profissional e é reembolsado nos limites do seu contrato.
Convenhamos ser esta a possibilidade que mais atende aqueles que buscam por um atendimento de qualidade sem sofrer restrições qualitativas. A sua superioridade é inquestionável, mormente quando falamos em valores dos planos em relação aos seguros. É inegável que os prêmios dos seguros são altos e nem sempre tão acessíveis.
Regulamentação jurídica do reembolso
Não obstante o reembolso seja amplamente utilizado nos seguros saúde (e em hipóteses restritas nos planos de saúde), fato é que ainda carece de regulamentação. Isso porque muito embora a RN 268/11 da ANS, disponha, em seu art. 9º, § 1º que "Para todos os produtos que prevejam a opção de acesso a livre escolha de prestadores, o reembolso será efetuado nos limites do estabelecido contratualmente", não temos normas específicas a respeito.
É certo que ao optar pela modalidade livre escolha, o pagamento do serviço será através de reembolso e esse valor será calculado de acordo com as regras estabelecidas no contrato entre seguradora e segurado.
Mas qual a documentação poderá ser exigida do segurado para fins de pagamento do reembolso? O burocrático e complicado processo administrativo de solicitação junto à seguradora pode ser auxiliado por terceiros? Quando e por que o reembolso será negado? É preciso efetivamente desembolsar a integralidade do tratamento médico para que seja devido o reembolso ou basta a comprovação da efetiva despesa?
Muitas são as questões que afligem o segurado e dão azo ao questionamento inicial: será o fim dos seguros saúde?
A pergunta tem uma forte razão de se propagar no cenário nacional atual. Ora, quem de nós dispõe de R$50.000,00, R$ 80.000,00 ou R$ 100.000,00 para custear à vista um procedimento cirúrgico? Creio eu que uma parcela restrita da população.
Sendo assim, se precisamos efetivamente desembolsar esse valor para conseguir o acesso ao tratamento no local e com o profissional escolhido (modalidade livre escolha) a vantagem do seguro é reduzida drasticamente.
Indubitavelmente faria muito mais sentido demonstrar a ocorrência da despesa para a concretização do direito ao reembolso. Obviamente que este seria pago nos limites contratuais e, então o segurado pagaria ao prestador do serviço apenas a diferença, a qual desde a contratação, ele aceitou suportar.
Infelizmente não é o que vem ocorrendo no uso dos seguros no Brasil. As seguradoras vêm se valendo de recente decisão exarada pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial 1.959.929-SP, a qual, ressalte-se, tem aplicabilidade exclusiva às partes daquela ação, sem efeitos erga omnes e pende, ainda, de julgamento de embargos declaratórios.
Naquele julgado, data máxima vênia, a nossa instância máxima em âmbito infraconstitucional deixou de aplicar axioma jurídico decorrente do princípio da legalidade, segundo o qual, ao particular é lícito praticar tudo aquilo que a lei não proíbe expressamente.
Segundo o eminente relator, Ministro Marco Aurélio Bellizze, "em caso envolvendo o seguro DPVAT, em que se discutiu se era possível a cessão de direitos ao reembolso das despesas médico-hospitalares, realizada por vítimas de acidente automobilístico em favor de clínica particular - não conveniada ao SUS - que prestou atendimento aos segurados, esta Terceira Turma, por unanimidade, decidiu não ser possível a cessão do direito ao reembolso, sem que houvesse o prévio desembolso dos valores pelo segurado."
Ocorre que a cessão de direitos ao reembolso no caso do DPVAT é matéria de ordem pública e encontra expressa proibição legal, o que não ocorre no caso do seguro saúde, entre segurado e seguradora. Esta última relação é privada e não possui qualquer vedação quanto à possibilidade da cessão de seus créditos. Assim, retornando ao axioma brilhantemente aventado pelo professor Osvaldo Simonelli1, ao particular é lícito praticar tudo aquilo que a lei não proíbe.
E, fazendo uma pertinente correlação com o entendimento da Diretoria de Fiscalização da própria ANS, em seu DIFIS 08 de 21 de fevereiro de 2017, o reembolso é devido uma vez comprovada a DESPESA e não o efetivo DESEMBOLSO (senão, por que optaríamos, como consumidores, pelo seguro saúde?).
Tema IX - ACESSO A LIVRE ESCOLHA DE PRESTADORES
Os contratos de planos de saúde que permitem acesso a livre escolha de prestadores devem:
A) Indicar as coberturas que o consumidor poderá utilizar no sistema de acesso a livre escolha de prestadores não participantes da rede assistencial, própria ou contratualizada, na forma do item 9 do Anexo II da RN 100/2005 e conforme cadastrado na ANS.
B) Conter cláusula clara com todas as informações necessárias para que o próprio consumidor possa calcular o quanto receberá de reembolso. Deste modo, a operadora deve trazer, conforme o caso; fórmula, juntamente com as descrições de seus componentes tais como: múltiplo de reembolso, unidade de reembolso, textos explicativos a respeito do modo de efetivação do cálculo etc.
C) A tabela utilizada para o cálculo do valor de reembolso deve ser amplamente divulgada pela operadora, para tanto deverá indicar no contrato:
1. além do registro em cartório, pelo menos mais dois meios de divulgação da tabela, dentre os seguintes: acesso à tabela no sítio da operadora na internet; disponibilização da tabela na sede da contratante em planos coletivos, para consulta dos beneficiários; disponibilização da tabela na sede da operadora, para consulta dos beneficiários;
2. os meios de esclarecimento desta tabela, por exemplo, através de atendimento por telefone ao consumidor;
3. para melhor compreensão dos beneficiários, a operadora poderá ainda estabelecer em seu contrato uma tabela exemplificativa com os valores dos procedimentos mais utilizados.
D) Dispor que o valor de reembolso das despesas médicas provenientes do sistema de livre escolha não será inferior ao praticado diretamente na rede credenciada ou referenciada (inciso IX, artigo 2º, Resolução CONSU 08/98, acrescentado pelo inciso V, artigo 1º, da Resolução CONSU 15/98).
E) Estipular prazo de reembolso, observando o prazo máximo de 30 dias após a entrega da documentação adequada (aplicação por analogia do inciso VI, artigo 12, da lei 9656/98).
F) Informar como ocorrem os reajustes dos valores de reembolso ou da unidade de serviço, conforme o tipo de tabela utilizado pela operadora.
G) É vedado o reembolso diferenciado por prestador, uma vez que tal prática restringe a livre escolha de prestadores. (grifos meus)
E assim também dispõe no item 18:
18. Assim, é razoável considerar que, na omissão contratual, a operadora poderá exigir que o pedido de reembolso deva ser instruído, ao menos, com qualquer documento hábil e idôneo que comprove a efetiva ocorrência da despesa, identifique o beneficiário e o procedimento executado, inclusive a data em que foi realizado. Ainda, nos casos de serviços e procedimentos que contenham Diretriz de Utilização - DUT estabelecidas, pode ser exigido também laudo ou atestado médico ou outro documento equivalente, emitido pelo profissional que solicitou ou realizou o serviço ou procedimento, atestando seu cumprimento.
Como se observa, a DIFIS demonstra a necessidade da existência de uma DESPESA contraída pelo segurado, mas obviamente, não exige o desembolso, sob pena de macular o próprio sistema do seguro saúde.
Inegável ocorrência de fraudes
De fato, é inegável a ocorrência de fraudes quando tratamos da modalidade livre escolha. Existem notícias de notas fiscais frias, serviços superfaturados e até mesmo solicitações de reembolso de serviços jamais prestados.
Mas os fins deveras justificam os meios? Devem os bons pagarem pelos maus? Ou melhor, deve o consumidor pagar pelos fraudadores?
Evidentemente que não!
A fraude deve ser combatida e sobre isso não existe qualquer questionamento. O que não se pode admitir é o sacrifício dos consumidores em razão da inabilidade das seguradoras em diferenciar a fraude do serviço corretamente prestado e probo do reembolso nos termos do contrato.
Como muito bem aludido pela advogada Juliana Hasse, "a partir do momento que há uma alteração repentina de uma prática já consolidada no mercado, há um prejuízo severo aos consumidores pois, enfrentando dificuldades para exercerem a livre escolha, experimentarão insatisfação; precisando realizar serviços de alto custo, terão dificuldade de receber o reembolso e correrão o risco de nem mesmo receber; desejando mudar de plano ou seguro diante dessas dificuldades, enfrentarão um processo burocrático que, ainda, poderá obrigá-los a se submeter a prazos carenciais."2
É o mesmo que, por analogia, retirar do correntista a opção de se utilizar do PIX haja vista os inúmeros golpes recentemente noticiados, ou mesmo extinguir os cartões de crédito. Ora, trabalhe a instituição financeira que tanto lucra com os serviços prestados para que consiga coibir as fraudes de forma a proporcionar a satisfação dos consumidores. Em última análise, todos ganham com o bom funcionamento do sistema.
Uma vez comprovada a despesa do segurado, não há que se exigir seu prévio desembolso, pois estaríamos pondo fim ao próprio seguro saúde. O direito do segurado ao reembolso já existe a partir da despesa, ainda que dependa do cálculo do coeficiente de reembolso nos termos contratuais.
Um bom funcionamento desse sistema somente traz benefícios tanto ao consumidor, quando à seguradora e ao prestador de serviços. Sem a sua correta aplicação estaremos fadados ao fim do seguro saúde? É a pergunta que não quer calar. Talvez seja o momento da ANS reafirmar seu entendimento, do Judiciário corrigir sua interpretação, dos segurados agirem com lisura e, acima de tudo, das seguradoras compreenderem que o bom funcionamento de toda essa engrenagem beneficia, acima de tudo, elas próprias.
----------------------
1 https://www.migalhas.com.br/depeso/379324/a-legalidade-do-auxilio-medico-hospitalar-nas-despesas-do-beneficiario
Comments