E se alterarmos esse "jogo de palavras" ainda dentro do objeto contratual dos seguros saúde? Falaremos em "despesa" e "cobertura". Dessa forma, argumentamos que a cobertura pressupõe despesa, e não necessariamente um desembolso prévio.
Nos últimos tempos, as seguradoras vêm alardeando aos quatro cantos que o ato de solicitar reembolso sem realizar o prévio pagamento das despesas médicas configura "fraude" contra o seguro saúde. Essa narrativa tem sido repetidamente disseminada, tanto em canais oficiais quanto extraoficiais, criando um clima de desconfiança e insegurança. Por meio de comunicados e campanhas, buscam convencer o público de que o "reembolso sem desembolso" é uma prática ilícita, desconsiderando a complexidade das situações enfrentadas pelos segurados, especialmente aqueles que lidam com tratamentos continuados e/ou de alto custo.
As consequências dessa alegação têm se tornado cada dia mais conhecidas por todos, com um impacto significativo na vida dos segurados. Notícias frequentes nas redes sociais e em telejornais nacionais relatam cancelamentos em massa de contratos, investigações policiais arbitrárias que sempre culminam em arquivamento, e negativas sistemáticas de reembolso e cobertura de tratamentos essenciais. Esses relatos evidenciam não apenas uma tentativa de intimidação dos segurados, mas também uma estratégia das seguradoras para reduzir seus custos em detrimento da saúde e bem-estar dos pacientes. Este cenário alarmante exige uma análise crítica e uma resposta contundente para proteger os direitos dos segurados contra abusos e arbitrariedades.
A Competência Legislativa e sua Usurpação pelas Seguradoras
A competência legislativa no Brasil é delineada pela Constituição Federal, que estabelece de forma clara quais são as atribuições dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário na criação de normas e regulamentos. No que tange às questões de saúde suplementar, essa competência é atribuída ao Congresso Nacional, que legisla por meio de leis ordinárias e complementares, e, em alguns casos específicos, ao Poder Executivo, que pode editar decretos, resoluções e instruções normativas para regulamentar a matéria.
No entanto, tem-se observado uma preocupante tendência de usurpação dessa competência legislativa por parte das seguradoras de saúde. Ao definir unilateralmente que a prática do "reembolso sem desembolso" configura fraude, as seguradoras extrapolam suas funções contratuais, assumindo um papel que não lhes compete. Esta postura configura uma inadmissível afronta ao princípio constitucional da legalidade.
A usurpação da competência legislativa pelas seguradoras se materializa na criação de normas internas e procedimentos que impõem novas obrigações e restrições aos segurados, sem a devida previsão legal. Ao criar um novo tipo de ilícito, seja ele cível ou criminal, sem qualquer base normativa, as seguradoras não apenas extrapolam seus limites de atuação, mas também comprometem a segurança jurídica e a confiança legítima de seus consumidores.
Além disso, essa prática arbitrária tem sido amplamente questionada no âmbito judicial. Diversas decisões têm reconhecido a nulidade das cláusulas contratuais que impõem condições abusivas e contrárias ao CDC e à lei dos planos de saúde (lei 9.656/98).
Ademais, a propagação de informação falsa é crime contra o consumidor, mas ao que parece, não se fala sobre isso em nosso país. Todos aceitam as informações trazidas pelos mais "fortes" e as incorporam como verdades, ainda que isso lhes custe uma diminuição drástica na qualidade de sua saúde. E lembrem-se: Não estamos tratando aqui sobre o SUS, mas sobre a saúde suplementar, ou seja, sobre planos e seguros de saúde, com mensalidades e prêmios caríssimos, que lutamos para honrar, com a falsa promessa de uma saúde digna.
Essa aceitação passiva das determinações e das próprias distorções legais/contratuais demonstra uma preocupante omissão fiscalizatória e a ausência de sanções adequadas por parte das autoridades competentes. É essencial que os órgãos de defesa do consumidor (Procons) e a ANS - Agência Reguladora atuem de forma mais proativa e rigorosa na proteção dos direitos dos segurados. A desinformação e a imposição de falsa informação para criar o medo são práticas que devem ser combatidas com firmeza para assegurar que os contratos de saúde suplementar cumpram sua finalidade de garantir acesso a tratamentos de qualidade.
Ora, se a fraude é considerada como o ato ilícito usado para contornar uma obrigação legal ou contratual, preexistente ou futura, exigindo para a sua configuração a existência de um dano a terceiro1, não seria mais acertado vislumbrar a recusa do reembolso devido contratualmente como ato fraudulento?
Vamos seguir nosso raciocínio de forma crítica e convidaremos o leitor a revisitar esse questionamento ao final.
O Julgamento do STJ e a Interpretação Gramatical do Reembolso
A controvérsia em torno da prática do "reembolso sem desembolso" ganhou destaque após o julgamento do REsp 1.959.929/SP2 pelo STJ. A decisão adotada pela Corte, com as devidas vênias, baseou-se em uma interpretação meramente gramatical do termo "reembolso", negligenciando a complexidade subjacente à questão.
A definição literal de "reembolso" sugere a necessidade de um desembolso prévio, o que implica que o segurado deva arcar inicialmente com as despesas médicas para, posteriormente, solicitar o reembolso. Todavia, essa interpretação restritiva ignora as peculiaridades dos casos em que os segurados enfrentam tratamentos médicos de alto custo, frequentemente inviabilizando o pagamento antecipado. A exigência de desembolso prévio para a concessão de reembolso conflita com a própria finalidade dos contratos de seguro saúde (função social do contrato), que visam proporcionar cobertura e assistência financeira para tratamentos médicos necessários.
Nas magistrais palavras do Desembargador Francisco Loureiro,
As despesas são elevadas, e disso decorre que o prévio desembolso pelo segurado pode gerar indesejável impasse para que seja garantida a cobertura do tratamento. Inaceitável que a seguradora se escuse da obrigação direta de custeio, ao argumento de que o segurado deve desembolsar diretamente elevada quantia com tratamento médico dispendioso, para somente então postular o reembolso. Tal comportamento significaria dizer que o segurado que não tiver condições financeiras de solver a dívida junto aos estabelecimentos (clínicas) nunca poderá pedir o reembolso do que não pagou. Em outras palavras, seria chancelar a recusa de cobertura reconhecida por V. acórdão, embora ainda não passado e julgado.3
Pois bem. E se alterarmos esse "jogo de palavras" ainda dentro do objeto contratual dos seguros saúde? Falaremos em "despesa" e "cobertura". Dessa forma, argumentamos que a cobertura pressupõe despesa, e não necessariamente um desembolso prévio. Ao comprovar a despesa assumida pelo segurado, a cobertura deve ser reconhecida, independentemente do momento do pagamento ao prestador. A interpretação meramente gramatical promovida pelo STJ se esvazia e voltamos a discutir o contrato e a sua função social.
Aliás, a própria lei dos planos de saúde assim nomeia:
Art. 12. São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas: (Redação dada pela medida provisória 2.177-44/01)
I - quando incluir atendimento ambulatorial:
a) cobertura de consultas médicas, em número ilimitado, em clínicas básicas e especializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina;
b) cobertura de serviços de apoio diagnóstico, tratamentos e demais procedimentos ambulatoriais, solicitados pelo médico assistente; (Redação dada pela medida provisória 2.177-44/01)
c) cobertura de tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, incluindo medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvantes; (Incluído pela lei 12.880/13) (Vigência)
II - quando incluir internação hospitalar:
a) cobertura de internações hospitalares, vedada a limitação de prazo, valor máximo e quantidade, em clínicas básicas e especializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, admitindo-se a exclusão dos procedimentos obstétricos; (Redação dada pela medida provisória 2.177-44/01)
b) cobertura de internações hospitalares em centro de terapia intensiva, ou similar, vedada a limitação de prazo, valor máximo e quantidade, a critério do médico assistente; (Redação dada pela medida provisória 2.177-44/01)
c) cobertura de despesas referentes a honorários médicos, serviços gerais de enfermagem e alimentação;
(...)
Voilà! A própria lei denomina "cobertura" e "despesa". Convenhamos, a saúde é importante demais para ser reduzida a um mero jogo de palavras, mormente quando se paga caro por ela.
A Quem Interessa a Alteração das Regras do Jogo?
No âmbito jurídico, a proibição de "venire contra factum proprium" impede que uma parte adote um comportamento contraditório em relação a uma conduta anterior, gerando expectativas legítimas em terceiros. A observância desse conhecido brocardo latino é essencial para garantir a boa-fé nas relações contratuais. Historicamente, as seguradoras sempre realizaram o reembolso mediante a simples comprovação da despesa, estabelecendo uma prática consolidada e previsível para os segurados.
No entanto, observou-se uma mudança abrupta e contraditória no comportamento das seguradoras, passando a exigir o prévio desembolso, especialmente após movimentos significativos no mercado de saúde suplementar. A aquisição da Sul América pela Rede D'Or4, por exemplo, marcou uma transformação profunda no setor. Da mesma forma, a união entre a Bradesco Saúde5 e diversos hospitais, amplamente divulgada na mídia, representa um movimento estratégico para consolidar o mercado. Notícias recentes destacam a criação de uma rede de hospitais pela Bradesco e Sul América6, evidenciando uma tendência de concentração e monopolização dos serviços de saúde suplementar.
Como bem orientou Antônio Campos7:
A saúde suplementar está na UTI. O cartel de preços dos planos de saúde. Agora, Rede D'Or-Sulamérica se aliam em joint ventura ao Bradesco Seguros para criar a Atlântica Hospitais. É a Saúde Suplementar cada vez mais nas mãos de poucos. Usuários dos planos, hospitais e entidades de defesa, uni-vos.
Não fica difícil entender a quem beneficia essa alteração das regras do jogo. A dificultação exacerbada do reembolso, aliada à imputação de fraude a condutas reconhecidas como lícitas pelo judiciário brasileiro, claramente favorece as seguradoras. Essas empresas, ao criarem obstáculos adicionais para a concessão de reembolsos, incentivam o uso exclusivo de suas redes credenciadas, que, não por coincidência, são cada vez mais dominadas por conglomerados como a Rede D'Or e a Bradesco Saúde.
A ironia é evidente: Enquanto as seguradoras se protegem e ampliam seus lucros, os segurados enfrentam cada vez mais dificuldades para acessar o tratamento de que necessitam, mesmo após pagarem altos valores por seus planos de saúde. O descumprimento contratual é alarmante. A livre escolha passou a significar fraude e o medo de ver o seguro cancelado, tem levado milhares de segurados ao uso indesejado da rede credenciada.
Aqui não falamos apenas de coação moral, mas também de assédio, com incessantes ligações inescrupulosas que objetivam a confissão da "fraude", que jamais ocorreu. Ressaltamos o desrespeito ao segurado que busca a cura de uma moléstia ou que luta para estabelecer um tratamento digno, já tão fragilizado pela doença. Desumano? Ouse dizer, maquiavélico.
Mas, se não falamos a respeito, continuamos sendo ludibriados pelas exorbitantes campanhas de prevenção às fraudes na saúde suplementar. Ainda temos tempo de acordar? Ainda há tempo.
Conclusão
Volto à pergunta inicial: Quem de fato está fraudando o sistema da saúde complementar?
Chegou a hora de os segurados abrirem os olhos para a realidade que lhes é imposta pelas seguradoras. Não é mais admissível que se aceite passivamente as acusações e manipulações daqueles que deveriam proteger seus interesses. É fundamental que os segurados compreendam com maior lucidez as questões que permeiam suas relações com as seguradoras, se informem e exijam nada menos do que seus direitos.
A aceitação cega das imposições está levando à perda de direitos fundamentais. Quantos direitos já foram deixados pelo caminho? Quantos tratamentos negados, quantos reembolsos recusados, quantas vidas afetadas? A dignidade vai se esvaindo a cada espera prolongada, a cada recusa, a cada exigência infundada. A moral se corrói frente às acusações e cede lugar ao medo.
A luta pelo respeito aos seus direitos é a única maneira de garantir que o sistema de saúde suplementar funcione de forma justa e eficiente. A informação e a ação consciente são as armas mais poderosas contra as práticas abusivas. A fraude do "reembolso sem desembolso" não existe. Os nossos legisladores não a criaram. O nosso Judiciário, majoritariamente não a reconhece. Então, como disse o famoso primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, "É melhor morrer em combate do que ver ultrajada a nossa nação." Pobre daquele que não defende os seus ideais.
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1 MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de Direito Civil 1, 42ª edição. Saraiva, 2009.
2 Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1739254607
3 TJ/SP; Agravo de Instrumento 2283668-45.2023.8.26.0000; Relator(a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro de Atibaia - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/11/2023; Data de Registro:21/11/2023
4 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/rede-dor-compra-sulamerica-2/
5 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2023/09/5121913-bradesco-compra-20-do-grupo-que-controla-o-hospital-santa-lucia.html
6 Disponível em: https://inteligenciafinanceira.com.br/mercado-financeiro/negocios/uniao-entre-bradesco-saude-e-rede-dor-rdor3-e-bandeira-branca-entre-dois-gigantes-da-saude/
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